O último capítulo

By 11:12 AM

Muitas horas passaram, mas minha mente ainda estava repleta de culpa. Eu não devia ter feito aquilo, eu sei que não devia, mas o que mais eu poderia fazer? Não foi minha culpa. Não foi.
Olhei para minhas mãos parcialmente cobertas de sangue. Sangue derramado injustamente? Não sei. Tudo o que sabia era que eu me sentia livre e o melhor de tudo, me sentia vingada.
Me afastei da janela e caminhei até a cama. Os lençóis cor-de-rosa escondiam o que acabara de ser uma purificação. Mas, o sangue já atravessara o colchão e agora formava uma poça vermelho rubro no chão. Por um vão no lençol, pude ver seus olhos esbranquiçados, vazios, sem vida, e enquanto fitava aquele corpo inerte, minha mente viajou no tempo.

Era uma tarde fria e chuvosa de sábado, a ansiedade já dominava meu corpo. Eu aguardava dentro do carro em uma rodoviária, pelo quê exatamente, eu não sabia. Todos os meus amigos sempre me advertiam sobre essas minhas aventuras, certos de que cedo ou tarde, eu acabaria enterrada em algum quintal. Tolos. Mal sabiam eles que o monstro na realidade sempre foi eu.

Uma porta azul se abriu e por ela eu pude avistá-lo. Ele caminhava tranquilamente, como se hoje fosse um dia comum. Sua aparência era idêntica às fotos. Alto, branco, cabelos curtos e escuros como a noite e com aquela mesma feição sedutora que imediatamente despertaria o lado animalesco das pessoas normais. Mas não em mim. Continuei a observá-lo em silêncio, enquanto ele andava de um lado para o outro à minha procura. Ele vestia uma calça jeans preta e desbotada, e um sobretudo até os joelhos escondia o que parecia ser a camiseta de uma banda de rock. Os pseudo-metaleiros sempre foram meus alvos prediletos, todas as suas revoltas pelo mundo em geral alimentavam o monstro que me habitava.

Uma música do Elvis Presley ecoou dentro do carro velho e sujo e enquanto eu era suavemente anestesiada por sua voz grave, ergui a cabeça para checar a maquiagem no espelho. Tudo estava perfeito, então baixei o vidro do motorista e acenei graciosamente até que ele me notasse. Em poucos segundos, ele me avistou e abriu um sorriso de orelha a orelha, me peguei pensando no quanto aquele sorriso me encantaria se eu fosse normal, mas eu estava longe de alcançar a normalidade, e com tal constatação, voltei ao foco e vi que ele já estava a poucos metros do meu carro. Por um momento, senti a hesitação gritar dentro de mim, uma voz sã que surge sempre que estou a poucos passos de acrescentar mais um capítulo em minha história. Mas como todas as outras vezes, a ignorei e então, fui à seu encontro.

Assim que desci do carro, ele me mediu dos pés a cabeça, de certo para verificar se eu teria os requisitos necessários para entrar para a sua lista de mulheres do mês. Ele era muito mais alto do que eu, o que me fez questionar se isso poderia atrapalhar os planos, mas eu sabia que não, fracos ou fortes, nenhum deles foram capazes de me deter.

Olá querida, é muito bom finalmente te ver” ele disse, me envolvendo em um longo abraço. Seu perfume invadiu minhas narinas à medida que sua boca roçava em meu pescoço. Isso será mais fácil do que eu imaginei.
Digo o mesmo” repliquei em um sussurro, pude perceber seus pêlos da nuca eriçarem à medida que eu falava.
E para onde vamos, afinal?” ele perguntou, quebrando o abraço para poder me olhar nos olhos. Minha expressão facial provavelmente o fez entender aonde iríamos, pois em um fragmento de segundo, surgiu em seu rosto um daqueles sorrisos marotos e interessados.

Ele abriu a porta do carro para que eu entrasse novamente e se dirigiu para o lado do passageiro. Embora um certo nervosismo pairasse sobre mim, eu me mantive calma e fiz o que sabia fazer de melhor: atuei. Por todo o percurso, conversamos sobre milhares de coisas, assuntos que para mim eram completamente entediantes, mas em determinados momentos, o carro era preenchido pelo silêncio e então, trocávamos olhares insinuantes e de puro desejo, de duas pessoas que aguardavam ansiosamente pelo destino. A única diferença é que eu realmente ansiava por ele. Ah, e como ansiava. Mas de uma forma diferente, que apenas eu e meu monstro faminto entendíamos.

Estacionei o carro na entrada do motel e enquanto falava com a atendente, pude sentir sua mão deslizar pela minha coxa. Eu usava um vestido preto frente única, simplesmente lindo e obviamente, curto. Cada detalhe era indispensável em noites como essa, pois, qualquer deslize e eu voltaria a estaca zero.

Uma batida na porta me trouxe de volta para o presente. Eu ainda segurava a faca que utilizei para finalizar meu trabalho, a culpa continuava a transcorrer cada veia de meu corpo, mas não importava mais. Olhei mais uma vez o corpo sobre a cama e embora eu tivesse drenado todos os anos da sua vida e livrado o mundo de um homem sujo, eu sabia que não poderia fazer mais isso, não era certo. E então, sem hesitar, ergui a adaga no ar e fiz a única coisa que acabaria com a minha maldição, a finquei em meu coração. Pude sentir cada fragmento de energia em mim evaporar pouco a pouco, meu corpo foi tomando novamente sua forma natural de um demônio, a forma que por milênios tentei esconder do mundo dos humanos. E foi então que transformei o que seria mais um capítulo em um epílogo, e o mundo estava finalmente livre. Livre de uma Succubus.

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