O Corredor

By 12:54 PM

Autora: Tânia Souza, fonte: Masmorra do terror

No outdoor, enquanto o cowboy fumava, as luzes de néon invadiram as cortinas vulgares. Na penumbra do quarto abafadiço, um ventilador girava suas engrenagens corroídas quando Paulo moveu-se na cama, murmurando, preso aos sonhos. O suor escorria-lhe pelo pescoço. Ainda adormecido, passou a mão na pele pegajosa. A noite estivera abafada, e o ventilador, em sua ladainha espalhava a poeira que os hotéis guardam com o tempo. A música vinda da rua era dolorosamente bela: — For you I'm bleeding... For you, for you…
Fora a canção que o despertara. Ainda naquele estado de sonolência, as mãos procuraram o pequeno celular embaixo do travesseiro. Abriu os olhos e viu no painel azulado que ainda faltavam quinze minutos para às quatro horas. Mais uma vez despertaria e seguiria viagem, deixando aquele hotel. Suspirou, ah como odiava acordar antes do despertador, roubado em quinze minutos do seu sono. Virando a cabeça para o lado, olhos fechados, empurrou os lençóis para longe, evitando pensar no dia que logo se iniciaria. Tentou não sentir a boca ácida, guardando resquícios de whisky , enjoado com o cheiro da maquiagem e do perfume barato de alguma prostituta que lhe fizera companhia parte da noite. Vencendo a náusea, cobriu a cabeça para fugir da luz vinda da janela. A canção havia desaparecido apesar da melodia ainda ecoar.
Havia sonhado, a imagem ainda clara em sua mente: asas de borboletas, lábios que balbuciavam palavras que não conseguira entender. Na modorra entre o sono e a realidade, sabia que voltaria a sonhar com a menina, segurando algo não identificado e murmurando.
A cabeça moveu-se no travesseiro úmido, os sentidos entorpecidos, novamente adormeceu. Viu-se em um corredor escuro, cercado por quartos em ruínas e paredes grafitadas. Seus passos arrastavam-se no chão escorregadio, enquanto uma água fétida surgia fininha na parede ao lado, cores embaçadas da madrugada envolviam a tudo.
Cada penugem do seu corpo arrepiou-se quando a canção cresceu, entrecortando a melodia, ouviu seu nome em sussurros. Pressentiu nas sombras um vulto passando. Virou-se devagar, indeciso entre correr e o medo que o paralisava, no entanto, não havia nada, nada além uma porta entreaberta, de onde vinha um soluço, um pequeno lamento. Paulo empurrou a porta devagar e de repente, todos os seus membros amorteceram-se: era ela!
Estava encostada na parede, em um canto imundo, cercada por teias de aranhas, quando ele a viu. Bianca, os cabelos dourados em duas tranças e a fita solta pelos ombros. A velha angústia o envolveu, o ar faltou quando a dor tornou-se física. Sem perceber, uma lágrima começou a cair dos seus olhos. Balbuciou o nome que há muito não ousava pronunciar e os olhos amendoados ergueram-se, fitando-o sem parecer reconhecê-lo, os lábios cheios e rosados abriram-se, implorando:
— Socorro, por favor...
Paulo via os lábios moverem-se em um pedido mudo, ouvido-a dentro de si quando ela apontou com os braços finos o outro canto da sala. Ali, bem a frente de Bianca, da sua Bianca, um gigantesco escorpião retorcia-se. Feroz, a pele estranhamente branca, o animal possuía no ferrão que agitava-se ameaçador, uma ponta vermelha. O ferrão ia e vinha em direção a moça, cada vez mais perto. Paulo olhou ao seu redor, nas mãos viu-se de repente com um facão. Ele avançou aço contra carne, quanto mais fortes eram os golpes, mais o peçonhento se debatia, os olhos arregalados e azuis explodindo em sangue. As sombras cresceram por todo lado levadas ao som dos gemidos finos que subiam pelo ar, até que a carcaça albina jazia derrotada. Levantou os olhos, entretanto ela já não estava ali, apenas a ponta do vestido branco arrastando-se pela porta. Desesperado, ele a seguiu pelo corredor enlodado, quando enfim os corredores bifurcaram-se, ele a viu, esperando-lhe. As tranças douradas, a fita azul, a renda suave enfeitando a borda do vestido, como da primeira vez que a vira. Os mesmos olhos amendoados fitando-o, em expectativa. Ela agora em seus braços, a boca na sua, a pele, o cheiro que nunca o havia abandonado expandiu-se quando os braços o envolveram. Paulo tremia enquanto seu corpo a prendia na parede, explodindo de ternura e paixão, tocando-a por cima do algodão, sentindo o coração batendo sob o seu peito, ele chorou. Nos corredores sombrios, as notas espalhavam-se: — And every new dawn... ends in bitterness ...
O ventilador movia-se lentamente no quarto. As hélices foram parando, parando até que o silêncio sufocou as horas e Paulo acordou. Os olhos estavam úmidos. Os soluços irromperam no peito do homem. Abraçou o próprio corpo, sentindo o cheiro da pele amada, depois de tanto tempo, porque sua mente a trouxera de volta? A velha dor... amarga dor. O calor crescia. Novamente procurou o pequeno celular, os números diziam claramente: 3horas e 45 minutos. Um pesadelo, um maldito sonho. A cabeça repousou no travesseiro, aquela noite havia sido longa, sentia sede, os lábios ressecados. E ela. Ela impregnando-se em sua alma. Fechou lentamente os olhos, mais quinze minutos, na esperança de tê-la um pouco mais, forçou o corpo a descansar novamente. Foi se deixando embalar pelo sono até que o sonho voltasse. Estava novamente no corredor escuro. Na parede, recortes de jornais manchados de sangue exibiam letras turvas que o papel embolorado não permitia ler.
Os sussurros agora chamavam por seu nome, enquanto ele corria, tocava as paredes do corredor escuro que pulsavam sob suas mãos. Ouvia os passos leves, revendo o campo onde ele e Bianca haviam corrido pela primeira vez, sonhado tantos sonhos, dançando na varanda, as faces tocando-se, ah, era a mesma melodia.
Uma porta abriu-se ao seu lado. O mesmo lamento de antes veio de uma sala em ruínas. A menina com asas de borboleta estendeu-lhe os braços, murmurando palavras mudas, oferecia-lhe algo que não conseguia identificar. Quando um ruído feroz quebrou a mesa de vidro, ela afastou-se, entristecida. Um riso áspero cortou a sala e no outro canto, Bianca chamava por ele, implorando por socorro. O escorpião branco erguia-se, porém Paulo sentia seus pés presos no lodo imundo da sala. A agulha rubra tocou a face pálida. Bianca gemeu quando o ferrão vermelho perfurou-lhe o peito, a ponta fina dilacerando a renda branca, rasgando a carne e o tecido até um rio rubro escorrer pelo chão, o ventre dilacerado e, horror dos horrores, um bebe chorava entre as vísceras. Paulo gritou, gritou, gritou, até acordar com o próprio grito, as imagens congelando-o na cama, o ódio tomando-lhe o peito. Viu-se preso na velha angústia sem conseguir para de gritar, revendo o casamento, a família, o bolo, a valsa, as imagens dançavam em sua mente: Bianca sorrindo, Bianca no jardim, Bianca voltando do médico, Bianca caída no chão da sala, sangue por todo lugar e desde então, uma viagem eterna por hotéis, adormecendo nos braços de putas decadentes, embriagando-se com whisky barato, fugindo da dor.
Ao perceber que ainda gritava, Paulo tentou levantar-se, mas a dor na cabeça o impediu. O celular caído no chão marcava ainda 3horas e 45 minutos. Olhou para o teto tendo a impressão de que este estava cada vez mais perto. Sequioso, sorveu um resto de água mineral da garrafa caída sobre o tapete, para não ver as sombras que tanto temia fechou os olhos, vendo-se outra vez no corredor estreito, os gritos de Bianca chamando por ele, jurando-lhe amor, pedindo, implorando por socorro, enquanto o escorpião albino balançava ferozmente o ferrão vermelho, os olhos dela nos dele, tantas palavras não ditas, a velha dor.
Via-se de novo no sonho, consciente, porém preso, hipnotizado entre sonho e a realidade, não podia reagir ao escorpião branco que foi se aproximando. Paulo debatia-se, os braços amarrados, sabendo sem razão que enquanto gritasse estaria salvo. Foi quando, em um canto, percebeu a menina-borboleta, entristecida, estendendo-lhe os braços. Em suas mãos, reconheceu um antigo espelho. Quando Paulo viu-se refletido, o ar faltou-lhe, e num arquejo... era ele no espelho! Era ele era o escorpião branco! Era ele a fera. O ferrão que dilacerou o ventre amado, julgando ferir uma semente que não aceitava como sua, partiu dele! No rosto da menina que o fitava, reconheceu seus próprios olhos azuis e as tranças douradas de Bianca. Finalmente entendia o que ela murmurara, em monossilábicos gemidos:
— Por quê, meu pai? Por quê?
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Eram oito horas da manhã, quinta-feira cinzenta, quando os jornais noticiavam a execução por injeção letal. O condenado havia cometido o crime de uxoricídio. A esposa estava grávida e por milagre a criança sobrevivera. Quatorze anos passados em silêncio aterrorizante, vários laudos depois, enfim a sentença se cumpriria. Na pequena sala, uma jovem de cabelos trançados observava, ao seu lado, um relógio parado marcava 3 horas e 45 minutos. Com olhos marejados, viu enfim a injeção letal perfurar a tatuagem de um escorpião no braço do pai. Para ela... era o fim.
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No velho quarto de hotel, as luzes de neon apagaram-se quando a garota-borboleta partiu. Paulo ficou sozinho no velho corredor, ouvindo a melodia dentro de si, “for you, for you i'm bleeding” e ao longe, a voz suave de Bianca pedindo por ele. Sentindo às suas costas o escorpião branco rastejar nas sombras da eternidade, seus passos seguiram pelo corredor. Para ele, estava apenas começando.

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